domingo, 1 de abril de 2012

Páprica I - Ela não sabia dizer não (1ª parte)


Dizem que Divina estava lavando as roupas de sua família naquela tarde de sábado, ouvindo a música Nossa Senhora de Roberto Carlos. Lavava e cantava e sonhava. Mulher sonhadora. Torcia a roupa e ia longe, quando a dor veio, a tontura, a fraqueza nos joelhos. Ela se sentou no chão em frente ao tanque, sem forças para gritar, pensando em onde estaria o seu menino. A mão vai ao peito.
_ Deus, que dor.
Sua cadela vem até ela. Cães sentem quando algo está errado. A cachorrinha começa a latir, talvez clamando por ajuda.

DIVINA
Trinta anos atrás. Era uma quarta-feira.

_ Pai, vai ter uma festa sábado...
_ Fica quieta e segura direito essa escada, menina! Vou acabá caindo daqui se você ficá aí distraída pensando em farra em vez de firmá esse trem direito. Eu podia chamá sua mãe pra segurá calada, mas cê sabe que ela num pode fazê força.
_ Por que o senhor não chama um eletricista? Vai acabar tomando choque.
_ Vou é arrancá esse fio e sentar nas suas perna se você continuá com essa conversa.
_ Tá bom... desculpa! É que o senhor tá sempre arrumando esse fio e todo dia dá mal contato e aí tem que mexer de novo.
_ Ave! Que raio de festa é essa?
_ É só festinha do pessoal aqui da rua na casa da Neire, pai. Não vai ser nada demais.
_ Se não vai ser nada demais, porque é que você qué tanto ir? Aposto que aquele primo dela vai tá lá.
_ Que primo?
_ Ora, aquele moleque, Ivan, filho do Alcides. Se você tivesse falado que ele ia e que não ia ficá perto dele eu até podia pensá no assunto. Agora cê quer me fazer de bobo? Você num vai é em lugar nenhum, menina sonhadora. Vai já pro quarto.

Quinta-feira, na escola.

_ Você vai certeza, não é, Divina?
_ Meu pai não deixou...
_ Ah, nem. Às vezes eu acho que você ainda é aquela meninha roceira que eu gostava de atazanar.
_ E às vezes você ainda é aquela menina cruel que fazia eu não querer vir pra escola. Meu pai só quer cuidar de mim. O que eu vou fazer? Se ele fosse igual ao seu pai e nem soubesse que eu existia eu também não ia me preocupar.
_ Nossa, Divina! Quem é a cruel aqui?
_ Desculpa! É que você me irrita. Se eu não posso ir, eu não posso e pronto.
_ Tudo bem. É que o Ivan vai estar lá. E ele fica o tempo todo perguntando de você.
_ Ele fica?

Sexta-feira, voltando para casa pelo caminho da praça, onde todos os dias se reuniam os garotos do bairro. Ivan sempre entre eles.

_ E aí, Divina! Jóia?
_ Oi, Ivan!
_ Tem tempo que não te vejo por aqui. Tá perdida?
_ Não... estou indo pra casa. Voltando da escola.
_ Mas sua casa fica pro outro lado.
_ Resolvi andar um pouco.
_ Hum... Você vai à festa da Neire amanhã, né?
_ Eu... É que... Sim, eu vou!
_ Ótimo! A gente se vê lá!
Sábado à noite, hora da festa.
_ Boa noite, pai!
_ Nem acabou a novela e cê já vai dormir?
_ Estou com sono.
_ Então vai pra cama. Boa noite, filha.
_ Boa noite, pai. Te amo!

...

_ Já dormiu? Abre aí! Cê precisa segurar a escada. Os fio tão dando curto. Daqui a pouco sua mãe e eu vamo ter que acender vela.
_ Espera pai, não abre!
_ Que maquiagem é essa moleca? Precisa ficá pintada desse jeito pra sonhá?
_ Eu vou à festa, pai! Todas as meninas da minha idade vão. Estou cansada de todo mundo rir da mocinha do interior. Desculpa pai, mas a menina sonhadora aqui não vai ficar segurando escada sábado à noite. Eu estou de saída.
...

Madrugada de domingo, após a festa.

_ Se divertiu na festa, moça? Tava lá dançando enquanto...
_ Mãe, o que meus tios estão fazendo aqui?
_ Filha, vem cá, vem. Me abraça, filha!
_ O que aconteceu, mãe? Cadê meu pai?
_ Seu pai sofreu um acidente, filha. Ele tava arrumando os fio e caiu da escada e bateu a cabeça. Ele tá lá no quarto com o doutor. Mas ele não tá bem não, filha. Meu velho não tá bem não.
_ Não chora mãe! Eu vou lá ver o pai!
_ Se pelo menos alguém tivesse segurado a escada.
...

O pai faleceu seis dias depois.
Ela nunca mais disse não.

Páprica.

BC



NOTA: PÁPRICA foi um texto escrito por mim há um ano e publicado no blog em 17 de abril de 2011, o qual pode ser lido aqui: http://bcmaoli.blogspot.com.br/2011/04/paprica.html. O trabalho mostra um momento na vida de seis personagens que vivem suas vidas sentindo que falta algo. Eles sentem um vazio no peito, uma falta de tempero em suas vidas. Reler um texto meses ou anos depois, mesmo que de minha autoria, faz com que eu tenha outra interpretação da ideia passada, como se não fosse minha. Hoje acho que a essência do que fora abordado em Páprica pode ser melhor explorada e é essa a idéia dessa nova seqüência. Em analogia a outras mídias, pode-se entender que o primeiro Páprica foi o episódio piloto que agora se tornou uma serie focada na vida dos personagens em diferentes fases de sua maturidade e a busca por algo que eles ainda não sabem bem o que é.

6 comentários:

  1. Ana Carolina Santos2 de abril de 2012 às 00:56

    Perfeito!
    Me encantou, me prendeu, esqueci de tudo por alguns minutos. Parabéns!!!
    E reler páprica foi quase um presente! É sempre bom rever textos antigos!

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    1. Que bom que gostou,Carol! As histórias de Páprica serão baseadas em fatos reais que me foram contados por um velhinho. São "causos". Esquecer de tudo por alguns minutos é sempre bom.
      Abraço, brother!

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  2. Oi Bruno
    Eu já te falei e repito, vc escreve muito bem, quero ver a continuação de sua história, é um pouco triste, mas muito boa.
    Bjão. e Feliz Páscoa!

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    1. Obrigado, Luciana! É sempre bom ver você por aqui. É um pouco triste, mas quem acompanhar, verá o crescimento dos personagens e momentos alegres surgirão. Espero q eu consiga levar a história a pontos que o leitor se identifique. A 2ª parte deve demorar mais que o esperado por causa do feriado, mas deve sair ainda essa semana.
      FELIZ PÁSCOA!

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  3. Passei para fazer uma visita e dizer-lhe que seu comentário foi postado. Volte mais vezes!

    Vc escreve bem. Gostei.,
    http://denisepuppin.blogspot.com.br/

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