quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Páprica I - Ela não sabia dizer não (3ª parte)



Ela abre os olhos e observa a meia luz que passa por entre as frestas da cortina, sem saber ao certo se está amanhecendo ou se é entardecer.
Olhar vazio.
Franze um pouco a testa quando começa a se lembrar da dura decisão que terá que tomar muito em breve. Mesmo assim está satisfeita, pois experimentou a leveza da maior liberdade que alguém pode sentir: esquecer o próprio tempo. Abre as janelas e contempla as cores do céu límpido. Tudo é tão lindo, mas falta alguma coisa.

Divina está de cama há dias. Sete dias.

Quando ela saiu do hospital, fez o que todos fazem quando me veem assim, cara a cara: começou a repensar sua vida. Sua reação a essa experiência foi interessante. Enxergou tudo com clareza e viu um mundo vazio. Sem dor, tranquilo, mas vazio. “Um vazio de um horizonte a outro não serve de companhia. Que saudades sinto dos tempos de trevas.” - pensava, deitada naquela cama.
O corpo físico sobreviveu, mas ao conseguir ver o mundo com mais maturidade espiritual, chegou a um ponto em que precisou se isolar, me chamando para conversar quando sentisse vontade, para entender o que realmente aconteceu com ela ao longo de sua própria história.

No primeiro dia, ela me contou que foi responsável pela morte de seu pai, que faleceu devido a um traumatismo craniano ocasionado pela queda de uma escada. Eu perguntei se ela empurrou a escada e ela me disse que não a segurou.
_ Está me dizendo que não foi minha culpa? – Questionou.
Expliquei para ela que ele não caiu porque a escada se desequilibrou. Ele teve uma vertigem. E como era um homem muito grande, ela jamais conseguiria segurá-lo. Ele cairia de qualquer jeito, só que de modo mais triste, pois ela iria presenciar aquela cena trágica. Ela ficou pensativa.

No segundo dia, ela perguntou minha opinião acerca de seu casamento. Disse-me que seu pai nunca gostou de seu marido, mesmo anos antes de ficarem noivos. Que nunca se entregou verdadeiramente por que pensava sempre na reprovação de seu pai. Eu procurei saber se o pai deixou claro que não aprovaria seu casamento e ela me respondeu que não sabia dizer. O pai só falou que não queriam os dois juntos em uma festa de adolescentes da vizinhança. Questionei se ela deixaria seu filho se envolver com uma desconhecida, quando ele ainda não tinha maturidade. Ela sorriu.

No terceiro dia, conversamos sobre seus filhos. Um adorável casal de jovens adultos. Ela me contou que sempre amou ser mãe, mas lamenta ter abandonado os estudos para criá-los. O sonho dela era fazer uma faculdade. Acho que ainda é. Chorou ao falar do desapego deles durante a adolescência e como gostaria de ter feito mais para que eles tivessem ido mais longe na vida. Palavras dela. Procurei me informar se ela conhece alguém cujos filhos fossem perfeitos. A resposta foi não. Perguntei quem ficou ao lado dela, além de mim, nesse momento de dificuldade que ela está passando.
_ Meus filhos – ela respondeu chorando e rindo. Depois repetiu: _ Meus filhos – dessa vez disse rindo e chorando.

No quarto dia, ela me explicou que as plantas no quintal e o jardim na frente são a resposta da necessidade, nunca superada, que ela tem de ter uma casa tão organizada quanto à da mãe dela foi um dia, onde a bananeira no quintal e a trepadeira no portão davam àquela casa um aspecto de lar. Expliquei que a nostalgia faz com que nos sintamos insatisfeitos com nossas conquistas. Contei um segredo meu e da mãe dela: a mãe nunca estava satisfeita com a casa. Achava que a trepadeira não crescia o suficiente para tampar o muro e a bananeira dava bananas de menos. O lar perfeito veio da cabeça de Divina enquanto criança. E expliquei que muitas vezes a visito porque a casa dela tem um ar de lar. Até mesmo para mim. Ela respira fundo, orgulhosa.

No quinto dia, eu que dou início à conversa. Falo sobre como deve ser cansativo ser a salvadora dos parentes. Ter essa necessidade de se doar para ajudar a mãe, os irmãos e até mesmo o sogro, principalmente quando acompanhou seu tratamento médico, quando pareceu que ninguém mais poderia; que se ela não fizer algo ninguém o fará. Concluí meu raciocínio dizendo que talvez não façam nada porque sabem que ela irá cuidar de tudo mesmo. “É meio cômodo para eles, não acha?”. E como foi triste quando nos poucos dias em que não havia condições de ajudar, teve que ouvir que não se dedica, que não se importa com o próximo.
_ Eu devia ter deixado eles morrerem? – ela perguntou. Conclui explicando que ela não errou em se dedicar demais, o erro foi esperar algo em troca. Infelizmente, para ela, essa característica de se doar, mesmo que não tenha o devido reconhecimento, foi escolha minha em sua criação. Eu quis assim. Pedi desculpas a ela por isso. Ela sorriu.

No sexto dia, ela finalmente estava pronta para conversar mais profundamente sobre seu relacionamento. O desgaste. As frustrações. As decepções. E me contou que teria uma importante decisão a tomar até o dia seguinte. Ela contou que leu em algum lugar sobre isso, sobre envolvimento entre pessoas diferentes, comparando relacionamentos com textos. Que a vida dela se tornou uma novela, mas que ela é um poema. E que ela e o marido são tipos de texto diferentes demais. Esclareci que não há necessidade de serem de mesma tipologia, apenas que sejam compatíveis, que respeitem as diferenças e que tenham real vontade de “ler” um ao outro.
_ Real vontade de ler um ao outro. É isso! Muito obrigada! Boa noite! – concluiu me dispensando da conversa e do quarto.

Hoje, nHoHo sétimo dia, ela se espreguiçou. E, como eu disse antes, ela abriu os olhos e observou a meia luz que passava por entre as frestas da cortina, sem saber ao certo se estava amanhecendo ou se era entardecer. Franziu um pouco a testa quando começou a se lembrar da dura decisão que terá que tomar muito em breve. Mesmo assim, estava satisfeita, pois experimentou a leveza da maior liberdade que alguém pode sentir: esquecer o próprio tempo. Abriu as janelas, contemplou as cores do céu límpido e, como se ainda pudesse me ver diretamente, bradou, com um sorriso lindo em seu rosto: 

_ Bom dia, Deus! O Senhor tem escrito a minha história e, como gosta de fazer, escreveu muito certo em linhas tortas. Eu agradeço por isso, mas quero tentar algo diferente. Posso não comandar tudo o que acontece no mundo, mas quem vai escrever e contar a história da minha vida a partir de agora sou eu. Sei que é o Senhor quem manda e decide pra que lado quer que a história vá, mas posso dar palpites, não é, Deus? Vai que o Senhor aceita alguma boa sugestão!

Vamos lá... Onde foi mesmo que o Senhor parou?

Ah, sim! Eu estava deitada há dias. De cama, sem vontade. Saia só pra ir ao banheiro, tomar água, comer alguma bobagem. Voltava pra cama, deitava. Pensando e repensando na minha vida. Sabe quando você não faz nada, mas sua cabeça não para um segundo e você fica mais cansada do que se estivesse trabalhando? Pois é, eu estava assim. 

Até que hoje de manhã eu fiquei com vontade de arrumar a cama.

Me levantei, arrumei a cama, tomei um banho, passei uma maquiagem básica, coloquei uma roupa simples que eu gosto muito, olhei no espelho e sorri pra mim. Eu estava linda! Ganhei um brilho no olhar que só me lembro de ter tido durante a infância, ao chegar em casa da escola e ajudar minha mãe a terminar o almoço, enquanto a gente esperava meu pai voltar do trabalho só pra correr até ele e abraçá-lo.

Liguei para o Ivan e avisei que estava pronta para conversar.

Ele veio na hora combinada e se sentou no sofá. Me perguntou se eu tinha colocado a cabeça no lugar e o que eu tinha a dizer depois de tudo o que aconteceu entre nós. Qual a minha resposta. Eu perguntei se ele aceitava um suco. Caju. E aqui estou eu, há não sei quantos minutos, olhando para a geladeira aberta.
Bom... É agora! Pegar o suco e voltar à realidade. 

Eu me sento ao lado dele, respiro fundo e ponho pra fora o que guardei por anos e que quase me matou:
_ Bem, Ivan! Por onde começar? Eu passei minha vida inteira procurando por um tempero que tirasse o gosto insosso de tudo, que desse mais sabor às coisas e aumentasse a minha vontade de saborear o que o dia a dia nos oferece. Anos se passaram. Décadas até. Sabe o que descobri? Deus é o diretor da história da minha vida, mas a roteirista sou eu. Ele me coordena. Me orienta. Me dá bronca. Me anima. Mas o texto é meu. Agora eu consegui entender o que Ele tem tentado me explicar durante todo esse tempo: Dentro dos limites que Deus me permite, eu escrevo a minha vida como eu quiser. Ser a escritora de minha vida é o meu tempero. Eu estou sentindo sabores deliciosos no ar que eu respiro; nas cores que eu vejo (quantas cores, quantos aromas, quantos amores... inúmeros... inúmeros); nas texturas que eu sinto; a delícia dos sons. Até mesmo no prazer de um espirro, que coloca pra fora de meu corpo algo que não reconhece. 

_ Dá para notar como você está segura de si. Fico feliz com essa melhora. Isso é muito bom mesmo. Tudo vai dar certo. Eu fiquei muito preocupado. Se acontecesse algo com você eu não iria me perdoar. Afinal, eu acabei causando todo esse estresse. Me perdoa!

_ Você não foi a causa do meu estresse. Talvez tenha sido a gota d’agua (haha). Eu não guardo mágoa alguma de você e, sim, eu o perdoo. Pensei muito e sei que tudo aconteceu daquele jeito porque teve que ser assim. É como diz o povo: “Não é porque não deu certo que o relacionamento foi ruim ou perda de tempo”. Eu aprendi demais no passar dos anos. Sou eternamente grata a você. Você cuidou de mim. Me fez ter experiências que eu nem sonhava. Foi tudo o que passamos juntos, tudo o que mudou em nossas vidas enquanto estávamos juntos, que me fez ver as coisas como as vejo agora. De um jeito mais natural e simples. Foi depois de pensar muito e reviver toda essa experiência que eu pude entender que eu não sou culpada pela morte de meu pai. Eu não sou culpada por tudo o que acontece de errado. Nem sou responsável pela vida de todos. Eu mereço um momento egoísta. Eu quero ficar sozinha. No meu tempo. No meu espaço. Não digo que preciso de solidão. Não! Isso não. Jamais! Sentir o prazer de estar só e seguir minha vida sem me questionar se o outro está gostando ou não é diferente da dor da solidão. Esta não é um momento. Não é uma escolha. É uma condição. E não pode ser evitada. E sentir solidão, estando acompanhada, é aceitar uma tortura em nossa própria alma. 

_ Divina, um amor igual ao nosso não acontece todo dia. Como você bem lembrou, vivenciamos muita coisa juntos e, mesmo após todos esses anos, nosso amor é algo vivo.

_ Verdade! Nosso amor era algo vivo e, como tudo que é vivo, nasceu, cresceu, amadureceu, teve suas fases de doença e de fartura e um dia tinha que morrer. Eu precisei chegar muito perto do lado de lá pra perceber que a morte é algo natural. Não foi essa a minha vez, mas um dia será. E quando eu estiver cara a cara com Deus novamente eu quero virar pra ele e falar: “Adorei essa passagem! Muito obrigada!”.

_ Você ainda está um pouco perturbada com o incidente. Não está falando coisa com coisa. Está aí filosofando. Vamos tentar ser mais diretos, tá bom? Eu acho ótimo você enxergar as coisas de modo mais bonito, mas não mudou nada entre a gente. Está tudo como sempre foi, falta apenas você querer enxergar. Agora só me diz o que eu tenho esperado tanto para ouvir. Diz para mim que eu posso pegar as minhas coisas e voltar para casa. Diz que você sabe que seu lugar é ao meu lado. Tudo será diferente, eu garanto.

_ Com certeza será. Venha. Me dê a sua mão. Olhe bem nos meus olhos. Pode ver o brilho renovado que há neles? Olhe nos meus olhos. Anda. Não se preocupe, não vai se cegar. 


...

...

...


_ Não!


Páprica.

BC

Para acessar: 
* Páprica  (clique aqui)
* Páprica I - 1ª parte (clique aqui)
* Páprica I - 2ª parte (clique aqui)

9 comentários:

  1. Fantástico!!!!
    Muito bom!!!
    Misturar textos já postados no Blog trouxe um charme especial à este!
    Você conseguiu narrar de uma forma bem interressante a páprica que faltava na vida da Divina em uma sequência de três textos, sem perder o ritmo. Adorei!

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    1. Oi, Renata!
      Primeiramente, muito obrigado por me ajudar a decidir o final. Estava em dúvida quanto ao destino da minha amiga Divina.
      Utilizei antes a mistura de textos, com os links, em "O rascunho" e gostei, que bom que gostou também. Creio que em "Páprica", por ser uma série, se torna até necessário para a compreensão de cada parte.
      E, novamente, muuuito obrigado!


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  2. Oi Maoli!
    Você escreve muito bem hein. Texto bacana e profundo. Gostei.
    Obrigado, pelo comment no meu blog. Que bom que curtiu minha historinha lá. Então, o Comando Épsilon está sendo publicado todas as quartas a noite. Acompanhe mesmo, porque tem muita coisa pra rolar ainda.

    Até!!

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  3. muito bom! Visita o meu... http://mardeletras2010.blogspot.com.br/2012/09/blog-post.html#comment-form

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    1. Obrigado pela visita, Vanessa! Eu já estou acompanhando o seu mar de letras!!!
      abraço!

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  4. Obrigada! Ler seu texto me incentivou a fazer o mesmo que a Divina.

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  5. Oi Maoli. Estou boquiaberta com a leitura deste texto riquíssimo. O seu talento para a tessitura é um deleite para o leitor. Agregar os textos para contar a história da Divina foi um show de palavras e emoções. Que lindo ser a roteirista da própria vida e ser coordenada por Deus. Acho que esta foi a parte mais edificante deste texto pois nos deixa uma belíssima lição. Tomemos as rédeas da nossa vida, deixando espaço apenas para as correções que Deus certamente fará, orientando-nos quanto aos caminhos que devemos seguir. Parabéns!
    Obrigada pela carinhosa visita e por seu maravilhoso comentário. Tenha uma boa noite e uma feliz semaninha. Beijos com meu carinho.
    Gracita

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    1. Oi, Gracita! Muitíssimo obrigado por suas palavras. É sempre bom recebê-las. Bom fim de semana.
      beijo

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